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[Café&Sophia] O Esclarecimento em Kant por Lucas Mesquita

Para Kant, esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem da menoridade, da qual ele próprio é culpado, sentido atribuído em seu texto “Resposta a pergunta: que é esclarecimento” como sendo a incapacidade de pensar de maneira autônoma, dependendo do entendimento de outro indivíduo. Com efeito, essa tese é o sustentáculo essencial para dar continuidade ao conceito de esclarecimento definido pelo filósofo, pois, se o homem é culpado pela sua condição de subordinado ao pensamento do outro, o esclarecimento só pode ser alcançado através da disposição do próprio sujeito em sair da menoridade.

Qualquer homem pode alcançar o esclarecimento, contudo as causas fundamentais para que a condição do indivíduo permaneça são a preguiça e a covardia, agentes imprescindíveis para manter o homem na categoria de menor durante toda a sua vida. Preguiça, pois é suficientemente mais fácil ter algum tutor que pense por nós, sirva de apoio e execute as tarefas mais árduas como raciocinar e decidir. Covardia, afinal é extremamente arriscado dar um passo em falso rumo ao desconhecido, haja vista que os tutores estabeleceram uma relação de senhores da humanidade, preservando o público amedrontado a fim de não ousarem caminhar pelos próprios pés e, dessa forma, permaneçam vassalos da iniciativa de outrem. Não obstante, devido à dependência com o estado de ignorância, torna-se difícil desprender-se da menoridade.


É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder (KANT, 1783, p. 2).

 

Contudo, Kant define o esclarecimento como um processo natural do indivíduo, sendo, para ele, prejudicial até mesmo influir no vagaroso decorrer desse processo. Ou seja, um tutor que tenha anteriormente conduzido o público ao jugo da menoridade decide, por exemplo, espalhar o espírito da avaliação racional e da vocação humana, princípios imperativos ao esclarecimento. Ao fazê-lo, delatando o antigo modo de pensar, na tentativa de desconstruir um preconceito, o tutor apenas conseguirá, em última instância, substituí-lo por um novo, talvez mais lapidado. O que antes receitava ao público “creia!”, agora adverte “não creia!”. A mudança não se deu como uma conseqüência do esclarecimento dos indivíduos, mas pela mesma tutela que pensava, decidia e agia pelo público. Desse modo, o filósofo afirma que “um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento” (KANT, 1783, p. 2).

Se um tutor não pode então tornar o individuo esclarecido, a única maneira de fato eficaz é dando-o liberdade, mas como essa liberdade pode influenciar na ordem social? Se um militar começasse a desacatar a ordem de seus superiores, mesmo com uma idéia justa, causaria uma desordem e poria em risco a finalidade pública de sua função. Qual então é o limite para que se exerça a liberdade? Kant responde a essa problemática com as definições de uso público da razão e o uso privado da mesma caracterizando-os da seguinte maneira:


Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado (KANT, 1783, p. 3).

 

O sacerdote que alcança um pensamento dessemelhante ao que é atribuído à sua função como clérigo não deve, portanto, proferir em uma congregação de fiéis o que pensa, em detrimento dos preceitos da religião. Entretanto, na função de sábio, ele pode e deve expor publicamente ao mundo suas idéias, seriamente observadas, contra o que ele considera prejudicial ou injusto. Somente o uso público, torna o indivíduo esclarecido e por isso deve ser livre. O uso privado, contudo, em determinadas circunstâncias, não atrapalha o esclarecimento, mas a ordem social e seu funcionamento.

Como implicação, o padre não fala por si quando efetua seu papel como sacerdote, mas em nome da igreja, excluindo assim naturalmente toda utilidade prática dos preceitos. Kant, seguindo argumentativamente, considera um absurdo os tutores das coisas espirituais deverem ser menores e falar em nome da instituição, afinal, por definição tutor é aquele que fala em nome de outro. Se ele, enquanto sacerdote, depende da voz da igreja, é incoerente estar na condição de tutor e ao mesmo tempo ser tutelado.

Sobretudo, para que haja a liberdade do esclarecimento e do uso publico da razão deve haver, por parte do governo, uma legislação que seja imparcial. Que preserve o direito de ambas as partes sem beneficiar algum dos lados de maneira que uma parte não poderá violentar o direito da outra ou impedi-la de chegar ao esclarecimento. Não caberia ao governo, entretanto, tomar parte na discussão ou até mesmo de censurá-la, pois o próprio objetivo da defesa legal do direito do esclarecimento é impedir o surgimento de leis universais que contribuam com a perpetuação da menoridade. Num regime de esclarecimento a ordem pública se mantém sozinha e por isso o governo não precisa se preocupar.

Sendo o esclarecimento um direito natural do ser humano, é também natural o avanço em sair da menoridade. Nisso consiste a necessidade de entendimento da condição de cada indivíduo: a natureza humana se fundamenta no progresso e encerrá-lo sob a voz de um tutor, sendo em matéria religiosa a forma mais danosa, é ferir a determinação original do homem. Como solução, o uso público deve ser favorecido enquanto tal para que, de modo brilhante, cada pessoa obtenha a liberdade necessária para calcar o caminho do esclarecimento.

 
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