Foto: Jair Naves em apresentação no Teatro do Paiol (Curitiba – PR), no dia 16/5. Crédito: Vinicius Grosbelli
Ele tem que tomar uma cerveja antes de entrar no palco. “Vem até mim um senhor de fala lenta. Diz que bebendo assim eu nem chego aos quarenta”, diz a letra de “No fim da ladeira, entre vielas tortuosas”, de Jair Naves. Seria um autorretrato ou apenas uma história bem contada? Uma coisa é certa: as letras são muito intimistas – parafraseando Naves, guilhotinescas e fatais. Como o artista já afirmou em entrevista ao Bem Paraná, algumas vezes, mostrar o seu interior de maneira tão escancarada lhe causou um ou outro mal-estar, servindo de lição para outras composições que vieram em seguida. Ao ouvinte de primeira viagem, a estranheza pode afastar; já a familiaridade com a estranheza, encantar.
“No fim da ladeira, entre vielas tortuosas, há uma vila de casinhas silenciosas. Numa manhã fria, eu saí de uma delas, convencido de que ali eu havia achado a pessoa certa. Agora dói passar perto daquele lugar”
Antes de ingressar na carreira solo, Naves integrava a banda Ludovic, que, em junho, dá as caras no Festival Transborda, em Belo Horizonte (MG) – mês que completa 15 anos de existência. Uma volta ou “um brinde aos velhos tempos”? Ainda não se sabe. Ludovic mostrava um Jair Naves mais agressivo, suas letras, no início, eram mais breves; seus berros, mais altos. Um lado mais pesado, a travessia entre juventude e idade adulta, sempre um tanto nebulosa. “Eu ainda me sinto tão cru”, disse ele em Repetição Insignificante. Agora, com mais de uma década na estrada, o amadurecimento veio e o tornou mais lapidado.
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É difícil gostar do som de Naves à primeira escuta. Um jeito um tanto estranho, uma voz atípica, letras ora vorazes e críticas, ora românticas e comoventes. Um mar conflituoso. Demora pra pegar. O que mais gosto é a voracidade, a coragem das letras, misturada com um instrumental tão harmônico. Jair é um poeta: explora, por um lado, o que todos nós sentimos por dentro, nosso anjo negro – as derrotas, descrenças, perdas, desilusões, bloqueios, impulsos e receios –, e, por outro, também consegue sair do “eu” e fazer um olhar crítico para a postura de quem está ao lado, do lugar em que se vive e das ideologias que ali se alimentam. Ele pensa em religião (ou a falta dela), em morte, em não-pertencimento, em um “mundo a ruir”. Pensa no vazio cotidiano, nas relações efêmeras, no esgotamento que todos nós sentimos no fim do dia ou ao acordar, quando nos perguntamos qual é o sentido de abrir os olhos todas as manhãs. Jair Naves nos lê sem saber. E nos leva à reflexão sobre nossas escolhas, caminhos e condutas.
A carreira é “solo”, mas ele não está sozinho. É um trabalho em grupo, de banda (Renato Ribeiro no violão e guitarra, Felipe Faraco no teclado e sintetizador, Rafael Findans no baixo e Thiago Babalu na bateria), ou seja, complementar – apesar de, claro, esta nova fase dar mais vazão a Jair como letrista. A riqueza de texturas, graça e fluidez da parte instrumental, principalmente em seu mais recente trabalho Trovões a me atingir (2015), demonstra muito a força do grupo. Foi este último álbum que me despertou mais para a escuta deste artista – talvez por ser mais pop, mais acessível – e me puxou a reouvir os outros trabalhos. É um disco com arranjos mais consistentes e leves, assim como as letras, mais respiráveis e otimistas do que as encontradas no primeiro álbum E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas (2012). Seria isso positivo? Confesso que tenho os dois como bons discos, mas o anterior tem um quê de selvageria emocional que, hoje, consegue me impactar um pouco mais.
Os nomes dos álbuns já evidenciam que a melancolia é a protagonista. Eles falam das dores e angústias internas, tão íntimas, que muitas vezes não dizemos em palavras. A primeira música que me gamou em Trovões foi B – a que tem a letra mais simples e um tanto piegas. Parece tão doce em seu início, tão singela, que nos surpreendemos com o seu desenrolar. Ela estoura de maneira magnífica. Em sua versão ao vivo, torna-se ainda mais forte, tempestuosa. Por curiosidade, é a única que Naves não canta, e sim Barbara Eugênia, pelo menos no álbum. Além dela, há outras participações especiais no disco, como Beto Bejia (Móveis Coloniais de Acaju), Camila Zamith (Sexy Fi) e Guizado (trompete), Raphael Evangelista (violoncelo) e Caio e Igor Bologna (percussão). Nas palavras do cantor, “é um disco sobre paixões, transformações, percalços, provações, renascimento. Sobre as mudanças impostas pela passagem do tempo, pela vivência, pela sucessão de experiências”.
É interessante quando uma banda consegue passar ao ouvinte duas experiências diferentes, uma ao escutar o álbum, outra vendo a apresentação ao vivo. E as duas são positivas, sendo que a segunda faz melhorar a primeira. A voz de Jair também é bem atípica, grave, que me faz lembrar sempre o Nick Cave – tanto pela voz, como pela postura. Muitos tendem a compará-lo com Ian Curtis, devido às letras, voz e jeito de se portar em palco, ou ao Renato Russo – que, por sua vez, se influenciou por Curtis – mas não o vejo dessa maneira. Há algo de rebelde, contraído, pronto pra explodir – talvez seja sua raiz punk, que o fez a formar sua primeira banda no gênero, aos 17 anos, ainda latejante, ainda Ludovic. Há algo de boêmio ali. Um descontrole retido. Inadequação. Bomba-relógio.
Jair é trovador de botequim, sua presença cênica é forte – e a dramaticidade combina com o teor de suas letras. O palco faz o personagem ou o personagem é real? Não importa. A emoção com que ele passa nos olhos – suaves, incisivos, ora, ambos – e na gesticulação complementam a sintonia da banda. E o resultado é mágico. Principalmente quando o lugar, como o Teatro do Paiol, em Curitiba (PR), ajuda tanto a criar esse ambiente envolvente e intenso, onde espectador se encontra a centímetros do palco. No meu caso, bastava um esticar de braço. Quem saiu de lá, certeza que levou queimaduras de terceiro grau pelos dois minutos – ou duas horas – expostos a Jair Naves.
P.S.: O show no Teatro do Paiol, em Curitiba (PR), aconteceu no dia 16 de maio e a fotografia aqui presente é do Vinicius Grosbelli, do site Tudo o que você vê. Todas as fotos aqui.
Discografia altamente recomendável:
EP Araguari (2010),disponível para escuta no Deezer, inspirado no caso dos irmãos Naves, um dos maiores erros judiciais da história do Brasil. “Muito mais do que um disco sobre a cidade, é um disco sobre separações”, explica Jair em curta-metragem que explica o tema do EP.
E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas (2012), disponível para escuta no Deezer.
Trovões a me atingir (2015), disponível para escuta no Youtube. Interessante ver o documentário sobre os bastidores do álbum.