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Narrativas

Se você me acompanha mensalmente aqui no Pausa, já sabe que sou psicólogo. Sabendo disso, já deve ter uma noção que meu papel é ajudar as pessoas a refletir, pensar sobre si mesmas, seus comportamentos e seu ambiente. Orientar na tomada de decisão e na percepção de que sim, há mais de um caminho para resolver as coisas.

Tendo dito isso, acredito que precisamos colocar em pauta, principalmente neste momento histórico que estamos vivendo, a realidade. Sim, a própria realidade. Não de forma física, mas do ponto de vista da percepção humana. 

“Mas Jhonatan, como assim? Bebeu tudo ou deixou um gole pra mim?”

Salvo em raríssimos casos de psicopatologia, é perfeitamente possível descrevermos o que é uma cadeira, um espelho, um relógio ou uma porta. O dia em que estamos, a hora, o mês e os eventos objetivos que estão acontecendo. Contudo, o que pode ser alterado nessas coisas são seus propósitos, suas finalidades, a própria essência. 

Todos nós temos a nossa narrativa. Você pode ver uma cadeira apenas como um lugar pra relaxar, se acomodar junto a outras pessoas para se alimentar. Outra pessoa pode ver essa mesma cadeira como um lugar pra sexo, para trabalho ou como apoio para trocar uma lâmpada. Nós podemos descrever fisicamente uma cadeira, mas cada pessoa pode ter seu uso pra ela, sua narrativa.

Narrativas são enviesadas. Você certamente cria uma narrativa de acordo com as experiências que teve. Se você teve muitas dificuldades na vida, vai ver tudo de forma mais endurecida. Em tudo que for fazer, sua experiência irá te alertar que podem haver dificuldades. Se você sempre teve facilidades por conta da sua situação socioeconômica, existe a tendência de ver as coisas de forma simplificada, como se todo mundo pudesse alcançar aquilo facilmente. Não quer dizer que as duas visões estejam 100% certas e irrefutáveis, mas apenas que são diferentes e moldadas de acordo com a realidade de cada um.

Olhando pro nosso passado, existem aqueles que defendem a ditadura militar brasileira. Dizem ter sido um tempo de prosperidade, que podiam andar tranquilamente na rua e que apenas quem era “arruaceiro” sentia medo, se rebelava. Ora, o que é prosperidade, segurança e arruaça para essa pessoa? A realidade nos mostra o cerceamento de liberdade e um comportamento agressivo por parte desse regime, mas como ainda existem, até hoje, quem o defenda? Narrativas! Por falta de empatia ou humanização, a pessoa se entrega ao viés de confirmação e só aceita aquilo que seja verdade pra ela, que reforce sua visão, que não a confronte, a conforte. Então é claro que pra ela, essa narrativa serve como uma luva. Sua verdade é essa, seu mundo é esse. Mostrar outra perspectiva para essa pessoa é quase como agredi-la, o que explica o comportamento hostil. 

Me veio essa reflexão por conta da nossa realidade e o que os estudiosos vem chamando de pós-verdade. Já não se pode mais, confortavelmente, parar no “contra fatos não há argumentos”. As notícias falsas, projetos de destruição de reputação na internet e ódio gratuito nos mostram que as narrativas e a distorção da realidade são um negócio lucrativo e saciam uma sede cruel do ser humano de superioridade. 

Veja bem. Se contesta o formato da Terra, validade de vacinas e FATOS históricos, tudo em prol de uma narrativa que, de certo, beneficia alguém. Você certamente já se deparou com a tia ou tio do “zap” que contesta a eficácia da vacina, mas mal conseguiu se formar no ensino médio. Ou ainda, profissionais da saúde formados, lutando na linha de frente, se recusando a tomar vacina x ou y. Narrativas! Uma narrativa bem estruturada pode te fazer mudar de ideia por maior que seja seu nível de estudo. É por isso que sempre digo, você pode ser um(a) pós-doutor(a), mas se não saber ter pensamento crítico, não consegue ver mais que uma utilidade naquela cadeira do primeiro exemplo.

Para os que acessam um site de leituras, é importante destacar que ler apenas não é o suficiente, é importante entender o que está escrito. Não ter medo de olhar para as alternativas. Isso dá trabalho, isso cansa, mas é necessário se você não quer alguém pensando por você. E eu não estou falando de legado ou que algum dia nossos filhos e netos vão rir da nossa cara, mas falando sim do momento presente, da qualidade de vida, da tomada consciente de decisão.

Não leia por ler nenhum texto, nem mesmo esse. Vá além do simples. Garanta que sua mente funcione por conta própria, não a serviço de agendas de terceiros. 

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