Democracy is good. I say this because other systems are worse. – Jawaharlal Nehru
Em Outlast 2, um jogo que não soube o significado da palavra “sutil”, assumimos o controle de um membro de um grupo investigativo que sobrevoava uma área onde, alguns relatos diziam, uma jovem grávida foi assassinada. Blake, o protagonista, Lynn, sua esposa e o piloto são abatidos em pleno voo por algo misterioso. Ao acordar, Blake se encontra sozinho e precisa procurar por sua esposa. O jogo se encontra no gênero do terror e lida com seitas religiosas fanáticas, a crença cega de seus seguidores e experimentos de grandes corporações.
De forma alguma, este título tem algo de especial, pelo contrário. Foi uma grande queda na qualidade do primeiro Outlast, um dos queridinhos deste gênero. Assim como seus antagonistas, o jogo comete muitos exageros em prol de seu objetivo, assustar o jogador. Por conta disso, se torna uma experiência apenas inchada, com muitos clichês e situações óbvias e uma alta dependência do valor de choque, que mais enoja e entedia o jogador do que o faz, de fato, temer pelo protagonista. Contudo, há uma ótima reflexão para se ter com a temática em relação aos momentos atuais: a necessidade da crença e o controle comportamental em massa. Se você se interessa ou se importa, aviso de spoilers cruciais daqui pra baixo.
Veja, em Outlast 2 nos é revelado que as atrocidades cometidas pelos grupos religiosos antagonistas do jogo não são, de fato, de seu livre arbítrio. A empresa que conduzia experimentos humanos no primeiro jogo, Murkoff Corporation, também conduz experimentos com torres de rádio nesta região. Essas torres liberam uma onda de luz intensa, seguida de sons de rádio, combinação capaz de matar animais pequenos como peixes e pássaros. A princípio parece pouco, mas exposição a longo prazo causa alucinações e paranoia. As torres foram construídas de propósito em uma região onde um auto proclamado messias, o “Papa” Sullivan Knoth conseguiu, através de teorias conspiratórias envolvendo assuntos religiosos, levar numerosas pessoas, seu “rebanho”, para viver sob as formas que ele julgava corretas e esperar a vinda do salvador. Eventualmente, por conta dos experimentos, Knoth ordena que seu rebanho mate suas crianças para evitar a chegada do anticristo, o que leva um grupo separatista, chamados de Heretics, a trabalhar ativamente para se certificar que esse anticristo chegue. Claro, por que não?
Mas é claro que isso tudo é ficção. Ninguém seguiria uma pessoa de forma tão cega se não fosse o controle de uma grande corporação vilanesca, não é?
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A literatura nas neurociências nos diz que faz parte do nosso processo evolutivo o comportamento de crença, acreditar em algo. Uma pesquisa conduzida na Universidade de Cambridge, intitulada The Biology of Resilient Belief (A Biologia das Crenças Resilientes), sugere que a estrutura biológica da crença é dividida em quatro aspectos que são universais: intuitibilidade, previsibilidade, confiabilidade e utilidade.
Crenças são culturalmente associadas à religião, mas não são exclusivas a esse campo. A ciência, por exemplo, satisfaz três desses aspectos: pode não ser intuitiva para muitos, mas nos da um senso de previsibilidade, de confiança no processo e, claro, se torna útil e essencial para nossas vidas, o que nos faz ter um senso enorme de controle, tão cobiçado pela raça humana. Até mesmo um cientista tem afeições emocionais naquilo que acredita, por isso existe o método científico, que se certifica de cobrar do cientista que descarte a teoria previamente estabelecida à luz de novas evidências, em prol da rigorosidade dos fatos. Um dos motivos de ciência não ser feita por uma única pessoa e sim por equipes.
Quando refletimos sobre as crenças no meio político, as coisas se tornam muito mais caóticas. Como as pessoas de Temple Gate (comunidade do “Papa” Knoth”), alguns de nós sente uma necessidade incontrolável e inexplicável em acreditar em um messias, um salvador, aquele que sozinho trará prosperidade e paz. Não é tão simples explicar ou entender essa situação de uma única ótica. Além das crenças serem biologicamente instaladas em nosso cérebro, isso por conta de nossos ancestrais e o reforçamento comportamental que isso trouxe ao longo de milênios, há também a questão social, de pertencimento a um grupo de pessoas que pensam como você, a baixa escolaridade, ao pouco senso de reflexão sobre o próprio comportamento, entre outros.
Darcy Ribeiro, político dedicado à educação, nos diz que o “fracasso da educação não pode ser acidental, ele tem que ser fruto de um plano sistemático”. Educação é um dos principais frutos que alimentam o funcionamento cerebral e cognitivo. Sem instigar o pensamento reflexivo através de estudos embasados cientificamente, leituras e observação criteriosa, o cérebro carece de ferramentas e repertório para julgar o que é real e o que é fantasioso, a verdade, as vezes dura, da ideologia, seja de qual lado for, que conforta mas omite os fatos. Torna-se cada vez mais difícil para a pessoa que está imersa nesta necessidade de acreditar, entender que aquilo pode estar corrompendo seu próprio caráter, então dando a luz a um ser humano corrompido, que se permite guiar pelos instintos primários de sua biologia, não se importando com as atrocidades e perversidades que presencia ou, em alguns casos, comete.
Sempre digo a todos os meus pacientes no primeiro dia da terapia que meu jeito de trabalhar é enxergar a realidade como ela é, não como eu gostaria que fosse. Carl Sagan já dizia que “não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar”, isto é, é infrutífero tentar convencer um fanático, seja ele de qual espectro for, de que aquilo no qual ele acredita, não tem fundamento ou é prejudicial a ele e a outros, isso porque é algo que vem do biológico, do comportamento individual e do social. Seria doloroso para esta pessoa enxergar que tudo aquilo que ela acredita, tudo aquilo que a reforça, que a faz bem (subjetivamente falando), que é o alicerce da sua vida, não faz bem pra ela.
Para fechar em uma nota otimista, acredito que apenas poderíamos lidar com isso investindo na educação criteriosa, de qualidade, a longo prazo. O tempo, o foco e o esforço são capazes de mudanças sólidas e é por isso que precisamos nos cobrar e cobrar as pessoas que escolhemos para nos representar que também tenham esse foco. Infelizmente, enquanto continuarmos marginalizando as pessoas de baixa escolarização, ou até de alta escolarização mas sem o pensamento crítico, criando memes e dizendo “eu avisei” ou á culpa não foi minha”, estamos entregando cada vez mais seguidores ao culto de “Papa” Knoth.