Semana passada eu defendi veementemente o uso de clichês na construção de uma narrativa. De que eles não são exatamente defeitos em alguma obra e sim que são, na verdade, apenas recursos. Tais recursos são um porto seguro para o narrador, uma vez que o público já compreende o conceito do arquétipo em questão. E coloquei que justamente por causa disso, os clichês são uma aposta mais segura do que algo que tenta ao máximo fugir deles.
E citei Sucker Punch – Mundo Surreal logo no final, filme autoral do diretor Zack Snyder (300, Watchmen, Man of Steel) e que gosto muito. A história de Sucker Punch é totalmente abstrata e… Surreal, como sugere seu subtítulo exclusivo no Brasil. (Agora vai um resumo e explicação do filme, tenho certeza que tem spoilers e não estou nem aí).
A história começa com Babydoll sendo internada pelo seu padrasto sacana num sanatório, após alguns acontecimentos que envolvem a morte de sua mãe e de sua irmã. A ambientação, nesse instante, se transforma do nada num cabaré, com Babydoll sendo na verdade, vendida por um padre que tomava conta do orfanato onde ela morava. Até aí, fomos apresentados por duas linhas narrativas da história. No cabaré, ela conhece Sweet Pea, Rocket, Amber e Blondie. As cinco garotas então tramam uma fuga.
Nisso, Babydoll traça um grande plano, no qual todos consistem em roubar determinados objetos que seriam necessários na arquitetura de sua escapada. Para obtê-los, outros planos menores são colocados em prática e todos eles consistem basicamente distrair todos à sua volta com a dança de Babydoll enquanto as garotas se arriscam para roubar os objetos. Acontece que Babydoll dança muito, mas muito bem. As operações de roubo são todas ilustradas por metáforas em cenas cheias de ação, que acontecem na cabeça de Babydoll. Nessas cenas, vamos de ambientações como a Primeira Guerra Mundial num cenário Steampunk ao feudalismo oriental com robôs samurais gigantes. Ao final, descobre-se que a protagonista em si não é Babydoll, mas sim Sweet Pea, que foi a única que realmente conseguiu fugir do sanatório.
Explicando o filme de uma maneira linear (coisa que ele não é): Sweet Pea é a protagonista moral que vive em um sanatório e projeta suas esperanças de fuga em Babydoll que, por sua vez coopera com o plano. Contudo, a imaginação de Babydoll, para facilitar as tarefas, cria um universo ambientado no cabaré e a Babydoll do cabaré cria outros universos paralelos que servem ainda mais para reforçar a imersão dessa ilusão (lembra um pouco Inception também). São vários enredos dentro de um enredo maior que, por sua vez, estão todos dentro de um enredo maior ainda.
O título entrega tudo isso. Sucker Punch é uma expressão gringa para “soco surpresa”, algo inesperado e brusco. Vários acontecimentos naquele filme são muito rápidos (o que é irônico, porque o Snyder é conhecido justamente por abusar do efeito de câmera lenta). O final é um soco na barriga de tão repentino e cru, principalmente a sequência em que é revelado que a “escolhida” é Sweet Pea e não Babydoll. Alguns momentos forçados, até admito, mas eu não estou fazendo uma crítica aqui.
Certo, depois de explicar o filme todo, eu quero fazer a ligação com a história dos clichês. Sucker Punch é um filme que foi reprovado tanto pela crítica quanto pelo público. Como eu disse, ele não é linear. São algumas histórias paralelas que se cruzam em algum momento e seu conteúdo não é completamente explícito para o receptor (tanto que os poucos momentos em que isso acontece, são justamente as cenas mais bregas). Sucker Punch foge do clichê porque uma porrada de personagens principais do lado do bem morrem e se dão mal; porque o filme não aposta numa narrativa simples, linear e mastigada; porque as protagonistas erram e muito; porque o diretor decidiu retratar um cabaré de fato, com a mulherada sensual de forma misógina (o que atraiu um número maciço das críticas, aliás) em vez de ficar no seguro politicamente correto; e, principalmente, acima de todos os pontos citados e não citados, porque tenta criar algo diferente.
O público não aceitou bem essa falta dos “clichês” e acabou detonando o filme. O enredo construído sem uma estrutura conhecida foi ignorado, incompreendido e acabou sendo considerado inexistente. Muitas das críticas ao filme foram justamente “Ah, um apunhado de cenas de ação aleatórias sem sentido algum” e coisa do gênero.
O mais curioso é que mesmo fugindo de clichês, Sucker Punch conta com vários deles. O padrasto que fica revoltado porque o testamento da esposa deixou tudo para as filhas e nada para ele é um exemplo. Várias características do arquétipo do Monomito (também conhecido como Jornada do Herói) estão presentes, principalmente nas cenas surrealistas de ação. O próprio final do filme, tentando dar uma lição de moral falada, consegue ser clichê. Aliás, é justamente mais um dos considerados defeitos do filme, que “o final é clichê”. Eu sei que é meio batido e eu odeio o argumento de “não gostou porque não entendeu”, mas o problema é que a carapuça serve e muitas vezes, acaba sendo verdade.
A rigor, acho que até o diretor previu que ia acontecer uma coisa dessas com o filme. Tanto que logo na introdução, Sweet Pea reclama no palco: “Isso é uma piada, certo? Diga-me qual é a razão disso. É para deixar as pessoas excitadas? Eu posso fazer uma colegial sexy. Eu posso até fazer uma doente mental indecisa. Isso até pode ser sexy. Mas o que estou fazendo? Lobotomizados em estado vegetativo? Que tal fazer alguma coisa mais… Comercial?”
Outro filmaço, que também é do Snyder e foi citado rapidamente na minha coluna da semana passada, é O Homem de Aço. Não vou entrar na discussão se o filme é bom ou não ou a opinião da crítica em si de um modo geral. Contudo, quero ressaltar que as principais críticas ao filme são justamente às cenas não clichês para um Superman. Entre elas está o croque final no pescoço do Zod (mimimi, Superman não mata), a morte do Pai Kent (mimimi, o Super teria corrido e salvado, que Super é esse que não salva as pessoas?), a destruição parcial e sem frescura de Metrópolis (mimimi, o Superman não iria ignorar tanto os civis causando tanta destruição assim) e o Superman revoltado que estourou o Caminhão do cara do boteco.
(Essa cena, aliás, quero ressaltar que qualquer resolução alternativa a ela seria alvo de críticas. Se o Super não tivesse feito nada, seria chamado de bocó mongolão e frouxo que fugiu da briga. Se ele tivesse enfiado um murro na cara do caminhoneiro iriam reclamar que o Superman é essencialmente bom e não iria nunca dar o troco a alguém assim, mais fraco do que ele. Então foi o mimimi, Superman jamais iria se vingar de alguém dessa forma, estourando o caminhão do cara. Ah, beleza, vão se foder. O filho da puta mereceu.)
Enfim. Esse post só serve para complementar a ideia de que os clichês são algo que o ser humano necessita. Ele precisa disso para entender. São justamente os clichês que fazem a narrativa andar e ser aceita pelo público. Isso vale também para o RPG. Se você começar a inventar uma história sem pé nem cabeça, nem explicação alguma e tentando ser algum roteirista vencedor da Palma de Ouro em Cannes em sua mesa de RPG, existe a chance de encarado como um mestre ruim, aleatório e que não sabe o que faz. Não estou criticando quem faz isso, muito porque eu mesmo às vezes caio na tentação. Só tem que ser balanceado. E usar os clichês corretamente.
Um colega meu uma vez colocou: “O clichê é erroneamente usado exclusivamente para descrever tudo o que é comum e repetitivo e que o público não gosta”. Ou seja, algo pode muito bem ser clichê, mas se o público gosta, não será clichê. Creio que seja bem por aí mesmo.
Aliás, só para terminar. Sucker Punch é um bom filme para ter ideias em mesa de RPG. Mesmo ideias lineares. Aquelas cenas de ação e enredos cheios de clichês que tentam fugir dos clichês abre a mente e servem como uma boa descarga alternativa, nem que seja algo do tipo “Eu faço melhor do que essa merda de filme”.