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Big Mouth e a moratória da adolescência

Há algum tempo atrás, me deparei com a propaganda de uma nova série original da Netflix chamada Big Mouth. A premissa era simples: uma animação veiculada ao público mais adulto (ou até jovem adulto) explorando a montanha russa que é a adolescência. Meu primeiro instinto foi “meah”, assim como acontece com a maioria das series ultimamente. Me desculpem, gente, está ficando cada vez mais difícil ser cativado pelas milhares de séries apresentadas todos os dias. Talvez seja a idade chegando, não sei. Recentemente entrei na Netflix e resolvi assistir à animação, afinal de contas, eram apenas dez episódios de aproximadamente vinte minutos cada e com ênfase na comédia, nenhuma exigência como Game of Thrones. Devo confessar que foi mais interessante do que eu originalmente dei crédito.

 

Tudo é tão simples quanto parece. A história é focada em várias crianças entrando na puberdade e na fase da adolescência e, ocasionalmente, o ponto de vista dos pais e responsáveis nisso tudo. Você tem estereótipos escrachados como o garoto que se masturba demais, aquele que tem dúvidas de mais e respostas de menos, a garota irritada e mal compreendida, relações parentais estranhas, etc. Contardo Calligaris, escritor e psicanalista italiano, nos fala em seu livro “Adolescência” que este é um processo onde nossa cultura nos coloca em uma espécie de moratória. Para o autor, a adolescência é uma grande invenção do Século XX onde, segundo os adultos, o adolescente não está totalmente pronto para a fase adulta e as responsabilidades que chegam com ela, contudo, não é mais criança para perpetuar alguns comportamentos. Em outras culturas, existem ritos de passagem e provas duras para se tornar adulto logo no fim da infância, talvez sejam até melhores do que o controle comportamental e o nulo senso de direção em nossa cultura.

O demônio da puberdade

Big Mouth explora essas dinâmicas com seus personagens e eu nem preciso ser específico. Todos eles estão constantemente se questionando ou pirando em situações corriqueiras da adolescência. Talvez o humor mais oriundo de South Park – a série é bem explicita e tem um mantra de “eu perco a audiência, mas não perco a piada” –  afaste alguns espectadores. Eu realmente não quero dar spoilers para quem pretende dar uma chance à série, mas existe um personagem que é um dos estereótipos citados acima, o masturbador, e ele exemplifica bem esse momento obrigatório da nossa cultura. O personagem, na grande maioria da série, contracena com o “Demônio da Puberdade”, uma entidade que seduz o garoto a se masturbar por tudo que vê e, nesta dinâmica, é explorada a sexualidade do jovem, os motivos que o levam ao ato de se masturbar, o uso da pornografia e a sua sensibilidade. Os adeptos da psicanálise se deliciariam com este processo, sendo que podemos usar muitos dos conceitos observados por Sigmund Freud, como o Demônio sendo a representação do ID, para estudar o personagem e suas interações.

Sendo um Behaviorista de coração, mas adepto da Teoria Cognitivo-Comportamental, estas resoluções mentalistas pouco me chamam atenção.  Há um caso para ser feito de que os adolescentes da série, sejam meninas ou meninos, estão entrando em conflito com a expectativa da sociedade e sua própria transformação. A série mostra como nós, quando passamos por esse mesmo processo, entramos em um momento tão profundo de descobertas e dúvidas e, ainda por cima, expectativas de nossos pais, professores e outros, que perdemos quase que absolutamente o controle, levando a uma “fase” que dificilmente é lembrada como nostálgica ou maravilhosa, salve por momentos específicos e que frequentemente são descontextualizados.

Quem não teve dificuldade de conversar com a pessoa que gostava?

Agora, para finalizar, eu gostaria de colocar uma música da série, que foi a que me motivou a assistir. Não se preocupe, fora de contexto, ela não da spoilers:

O amor não dura para sempre, ele vai morrer e partir seu coração
E você não se descobre sexualmente sem destruir algumas vidas
Não dê valor à sua mãe e você a perderá mais cedo ou mais tarde
O único jeito de lidar com a dor é estar chapadão

A VIDA É UMA BAGUNÇA FODIDA, É UM SHOW DE MERDA

Nunca expresse seus sentimentos ou a vida vai te dar um chute na cara
As vezes as coisas se movem tão rápido que você vomita por todo lugar
As crianças crescem e te deixam pra morrer sozinha e sem apreço
Vieiras te levam ao paraíso, mas seu cu fica do avesso

A VIDA É UMA BAGUNÇA FODIDA, É UM SHOW DE MERDA

Pessoas são horríveis
Tudo é triste e doente
Ninguém é realmente feliz
E não melhora depois da morte

Eu acho este momento bem significativo pois demonstra muito do que é visto na moratória da adolescência: jovens se descobrindo e se iludindo, os pais não sabendo lidar, ou sendo negligentes, com este momento na vida de seus filhos, a fuga para o uso de quaisquer substâncias que façam esses jovens fugirem de sua realidade e um geral descontentamento com as relações com outras pessoas. Esses e outros são todos processos que todos nós, em um momento ou outro, experimentamos na adolescência e a série nos faz refletir um pouco sobre. E eu sempre digo que toda reflexão é válida.

Mas é claro, nem toda piada funciona, a série não é um primor de enredo e produção e muito menos justifica você pagar um mês de assinatura da Netflix, caso você não tenha. No geral é uma série competente e válida para algumas boas risadas e a reflexão que pode se iniciar. Recomendo para todos que não tem problemas (ou medo) de lembrar da própria adolescência.

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