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Contando histórias sem palavras

É preciso aproveitar a oportunidade de estarmos em um site que tem como base a literatura para falar de algo que acredito ser muito pertinente, principalmente nos dias atuais: é possível contar boas histórias fora das páginas dos livros? Além disso, é possível contar boas histórias sem dizer nenhuma palavra?

Os videogames nem sempre sabem contar boas histórias, eu serei o primeiro a admitir isso. John Carmack, uma das grandes lendas da indústria e uma das cabeças criativas por trás dos primeiros jogos de tiro em primeira pessoa, um dia disse “Desculpem, mas história em jogos é igual história em pornô, você meio que espera que ela esteja lá, mas não é tão importante”. Essa frase foi dita em meados dos anos 90, pouco mais de vinte anos atrás. Com a acelerada evolução da tecnologia, videogames deixaram de ser mero entretenimento para serem uma real e solidificada mídia que tem a capacidade de conversar sobre assuntos dos mais diversos possíveis e, sim, contar belíssimas histórias. Olhando de maneira crítica, talvez o que impeça muitas pessoas de aderirem à história em jogos seja, justamente, o fator interativo. Seja por preferência ou hábito, muitos consumidores preferem tomar uma posição passiva em suas aventuras: sentado em um ambiente confortável com um livro na mão ou em uma sala de cinema acompanhando a viagem que o diretor construiu.

Contudo, o fator interativo dos videogames pode ser um dos maiores trunfos de sua narrativa, se não o maior. Existe uma forma de narrativa em jogos que, de longe, é minha preferida: environmental storytelling. Esta técnica de contar uma história através das mecânicas do jogo ou dos seus cenários, sem revelar ao jogador explicitamente o que aconteceu ali, é a maior técnica narrativa aliada ao videogame.  O maior exemplo dessa narrativa é um do meu TOP 5 da vida: Dark Souls. A franquia Souls marcou história na indústria de jogos por fazer seus jogadores pensarem ao invés de segurar suas mãos até o fim da jornada. “É difícil, mas é justo” eles dizem.

Há uma razão pra este Dragão parecer que saiu correndo de uma cirurgia incompleta do coração.

Para te deixar bem contextualizado, vou dar alguns exemplos. Um dos grandes pontos da história de Dark Souls são os Dragões Ancestrais, que viviam em um mundo cinza, sem oposições, sem conflitos, além do conceito de vida ou morte. Então, veio o fogo e, com ele, vieram as disparidades, luz e trevas, vida e morte, calor e frio. Os humanos vieram das trevas, o conceito de “deuses” nesse mundo veio do fogo e uma batalha ocorreu entre os novos seres contra os dragões, com a finalidade de destronar as enormes criaturas ancestrais. Isso é contado durante a introdução do jogo e é a única coisa que você vai saber caso pense em Dark Souls como qualquer outro jogo de aventura que você veio jogando nos últimos anos. Então, dentro do jogo, através de descrição de itens, cenários destruídos e abandonados e outros inimigos, você descobre que a raça dos dragões foi dizimada, sobrando apenas lagartos alados e animalescos, primos distantes das divindades draconianas de outrora.

Outra mecânica modificada pela história é a de salvar o seu progresso. Dark Souls não possui salvamentos automáticos ou pontos de checagem para sua conveniência. O jogo apenas te apresenta as fogueiras, seu único lugar de descanso. Caso você não consiga chegar nessas fogueiras e morra no meio do caminho, toda sua experiência permanece no lugar de sua morte e você voltará até a última fogueira que visitou, talvez três horas atrás em tempo de jogo e, caso falhe em voltar ao local de sua morte e recuperar sua experiência, terá perda total. O jogo lhe obriga a ser cauteloso e matematicamente preciso em suas estratégias, até porque, um mero morto vivo do começo do jogo pode te derrotar, não importando a força adquirida ao longo da jornada. Mas o que são essas fogueiras? Quando o deus dos deuses, o estereótipo do cara velho com barba branca, Gwyn, percebeu que as trevas e os humanos estavam consumindo sua Era do Fogo, ameaçando seu domínio assim como ele ameaçou o dos Dragões, decidiu usar sua própria essência para afastar a escuridão, reascendendo o fogo e prolongando seu domínio. Foi a arrogância e o medo de Gwyn que criaram as fogueiras e prolongaram a Era do Fogo, mexendo no curso natural das coisas. Foi sua ignorância que assimilou a humanidade ao fogo, criando a maldição dos mortos vivos e não permitindo que as pessoas morram sem que as chamas sejam reascendidas. É por isso que seu personagem sempre volta para as fogueiras após a morte, é por isso que a fogueira é um símbolo de conforto, tanto para o personagem quanto para você, psicologicamente falando.

Silent Hill 2 é mergulhado tão fundo em simbologia que, se Freud fosse vivo, ficaria maravilhado.

Eu poderia escrever um livro sobre Dark Souls de tantos detalhes que ele apresenta, mas é aí onde eu quero chegar. Dark Souls não funcionaria como outra mídia. Você poderia facilmente ultrapassar duas mil páginas se fosse explicar o sentido de cada monstro, local, arma ou personagem secundário. Como um psicólogo, fui treinado a perceber que tudo tem uma função, mesmo que não aparente e eu adoro quando as histórias que consumo evidenciam que tudo tem seu lugar, por menor que seja. Outro ótimo exemplo é a trilogia original de Silent Hill, onde cada aberração e evento dentro da icônica cidade servia seu propósito na narrativa e não estava lá apenas por ser um inimigo no joguinho. Além do propósito narrativo, essa forma de contar história exibe reais recompensas para o cérebro. Ao entender o contexto do que está acontecendo, você se sente mais motivado, tendo seus esforços de prestar atenção e pensar reconhecidos. Esses são alguns dos momentos de liberação de dopamina no seu sistema, o que desacelera os impulsos nervosos e te faz se sentir bem, algo que é muito associado aos videogames.

Veja bem, meu objetivo com esta reflexão não é dizer que videogames são melhores que outras mídias e sim oferecer a perspectiva que eles são tão habilidosos e únicos em suas narrativas quanto todas as outras mídias que se dispõem a te levar para outras realidades. Se você joga videogames, compartilhe nos comentários seus jogos preferidos que te contaram boas histórias, para que as pessoas que nunca jogaram possam ter um ponto de partida.

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