Por muitos anos, desde que tiveram seu início no Brasil em 1994, eu venho acompanhando os Cavaleiros do Zodíaco. Para mim, é uma obra excelente, que me ensinou muitas qualidades e me cobrou responsabilidades. Eu me sentia eufórico ao ver os cavaleiros de Atena se levantando toda vez que caiam e, apesar de todas as adversidades, apesar de todas as circunstâncias estarem contra eles, “seiya e os outros” eram teimosos demais para ficarem caídos. Contudo, o tempo passa, a visão crítica chega e CDZ quase não passa da Regra dos 15.
É uma obra com muitos furos de roteiro, alguns personagens muito pobres e pouco aproveitados, um excessivo uso da figura ideal masculina e uma ridícula desculpa para a ausência de mais mulheres na trama, fora a irritante teimosia de Kurumada em fazer da principal Deusa da obra ser apenas uma donzela em perigo. Eu acredito fortemente que ser crítico de uma obra não é detesta-la ou torcer contra ela, pelo contrário, é amar tanto que você aponta equívocos para que ela possa atingir tudo aquilo que você sabe que ela tem capacidade em atingir. E é por isso que resolvi escrever este texto, nós precisamos falar sobre Shun de Andrômeda.
Algum tempo atrás, a Netflix finalmente lançou o trailer de sua reimaginação dos Cavaleiros do Zodíaco e talvez tenha sido uma das maiores bombas que eu já vi estourarem na mão da gigante do streaming. A Netflix fez o que nenhuma outra empresa/obra conseguiu: uniu todos os fãs de CDZ, sejam eles novos, velhos, da obra original, de Lost Canvas, de Ômega, Saintia Sho, enfim, todos em crítica aberta à troca de sexo do Cavaleiro de Andrômeda, Shun, que agora será Shaun, uma mulher. O idealizador do remake, Eugene Son, foi ao Twitter explicar que a ideia foi dele e apontou como a obra original tinha uma baixíssima representatividade feminina e, por isso, havia mudado o sexo de um dos protagonistas. O fato de Son ter desativado sua conta no Twitter logo depois dispensa a explicação de que as pessoas não engoliram essa desculpa.
Veja bem, concordo com Son quando ele diz que havia uma baixa representatividade feminina na obra original e muito dos fãs sabem disso. Shaina e Marin eram as únicas amazonas de prata que tinha algum tempo de tela e a Saori, reencarnação da deusa Atena na Terra, era sempre tratada como uma donzela indefesa. O foco sempre foram os homens, a representação ideal masculina, o homem que não se da por vencido, o homem que responde à sua honra em superar seus desafios sozinho, o homem que tem por obrigação entrar em conflito direto com qualquer força que o oponha. Ikki foi forjado na ilha da Rainha da Morte, um lugar onde apenas o ódio sobrevivia; Yoga sempre ouvia que o cavaleiro deve ser frio e abandonar seus sentimentos e apenas focar seus esforços em proteger Atena; Seiya era o típico protagonista desse tipo de anime, teimoso, persistente, brigão e o que todos se inspiravam; Shiryu talvez fosse o homem mais equilibrado de todos, apesar de sempre ter que lutar sem armadura.
Mas é aí que vem a sacada de mestre da obra original: Shun de Andrômeda. Ele vestia rosa, tinha traços de fragilidade, sempre tentava argumentar com os inimigos, evitando entrar em conflitos diretos mesmo sendo um dos mais poderosos cavaleiros da obra (Seiya tem o poder do protagonismo, fazer o que?). Shun era uma representação masculina abruptamente diferente daquela que era esperada de se ver. Eu vivi em uma época onde não havia, nem de perto, a conscientização que existe hoje. Eu vi colegas evitando de ser o Shun nas brincadeiras da escola, eu via as pessoas com medo em descobrir que eram do signo de Peixes, eu via adultos apontando como alguns cavaleiros eram “gayzinhos”. Ao longo dos anos, Shun conquistou o respeito que sempre mereceu. Ao longo dos anos, Shun nos evidenciou que seus traços de personalidade não eram exclusivamente femininos, que nós, homens, também podemos mostrar fragilidade, insegurança, podemos evitar conflitos e optar pelas formas pacíficas de resolver nossos problemas, contudo, caso haja necessidade, iremos mostrar toda nossa capacidade em combate. Shun, como personagem fictício, nos mostrou que somos profundamente afetados pelo machismo que nós mesmos perpetuamos.
A obra original, que seja na marra, mostrou que a masculinidade em Shun era tão real e presente quanto todas as outras. Esse é o motivo de tamanha decepção dos fãs. Redesenhar Shun em uma mulher é comprovar o preconceito que um dia foi tão presente quanto é hoje. É o mesmo que dizer “hey, esse cavaleiro aqui é rosa e ta sempre pedindo ajuda do irmão, parece mais uma mulherzinha né?”. Eu digo NÃO para o Senhor, Eugene Son. Shun é um homem e você deve respeita-lo como tal. Se estamos falando de um remake, de uma reimaginação da obra original, por que não uma Yoga mulher? Seiya mulher? Ikki mulher? Shiryu mulher permanecendo a conexão amorosa com Shunrei? Ou, melhor ainda, por que não adicionar uma nova amazona de bronze na turma dos protagonistas, dar mais atenção e desenvolvimento para Marin ou Shaina? Por que, tão obviamente, Shun?
“Mas Jhonatan, você não percebe que essa obra não é pra você? É para conquistar novos fãs” esse argumento é muito falacioso, mas eu entendo sua origem. Já me deparei com ele em CDZ e várias outras obras e ele é verdade até certo ponto. Nós, os fãs antigos, somos os que movimentam o dinheiro dessas empreitadas. Nós somos aqueles que pagam por colecionáveis, pagam por ingressos de cinema, pagam por assinaturas de serviços online que exibem essas obras. As crianças não têm esse mesmo poder. Não sou contra o diferente, o novo, o arriscado, muito pelo contrário, torço por isso. Eu gosto de ver os roteiristas experimentando coisas novas. O problema presente nesta obra em particular é pegar o único personagem que carregava a maior fonte de representatividade na obra original e modifica-lo para assinalar uma agenda liberal que não entende, sequer, o que significa o poder da representatividade. Você não está representando nem homens, nem mulheres quando diz que o homem que veste rosa e é frágil, na verdade, é uma mulher.