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Refletindo sobre a terceira temporada de Demolidor

Este artigo terá spoilers da terceira temporada de Demolidor. Caso ainda não tenha assistido e pretende fazê-lo, guarde a leitura para depois. Você foi avisado(a).

Eu gostaria de começar o artigo de hoje confessando que adoro a série Demolidor, da Netflix. Não tive grandes contatos com o personagem fora suas histórias renomadas, porém, de certa forma, tenho um leve sentimento de representação na atuação de Charlie Cox como O Homem Sem Medo. Levando em consideração que estamos falando de uma obra de ficção, guardadas a tais proporções, gosto de pensar que minha deficiência visual parcial, habilidade de adaptação dos outros sentidos e compasso moral sejam levemente representados em uma grande produção que não falha em me entreter (talvez possamos abrir um argumento aqui sobre a segunda temporada).

Contudo, hoje eu gostaria de falar um pouco sobre a terceira temporada, já disponível no serviço de streaming. Para nos contextualizar, Matt Murdock é encontrando à beira da morte, após os eventos de Os Defensores, e é levado para se recuperar no mesmo orfanato que cresceu. Dai, desenrola-se uma jornada de autoconhecimento e autoquestionamento da função do Demolidor tanto para Matt quanto para Hell’s Kitchen. Além disso, a temporada aborda o plano extremamente meticuloso do vilão Wilson Fisk, agora adotando seu posto como Rei do Crime, para manipular o FBI e sair da cadeia. Temos também a introdução de um dos maiores antagonistas do herói, o Mercenário, que poderia render outro artigo inteiro sobre psicopatas. Senti que esta temporada tocou em assuntos muito delicados como a corrupção (ou a facilidade de se corromper) das instituições a serviço do povo, como essa corrupção está profundamente enraizada nos mecanismos da sociedade, levando a uma alta sensação de impotência e, até mesmo, um leve toque de fake news. Levando em consideração o atual momento em que vivemos aqui no Brasil – altíssima, algumas vezes agressiva, polarização política, profunda descrença no sistema político e nos próprios representantes deste sistema e a crença equivocada em heróis, similares aos das mitologias, que virão nos salvar da destruição certa – acredito que podemos relacionar este momento com a jornada contada pela série.

O meu foco aqui é o comportamento de agressividade. Em primeiro momento, acho que devemos colocar no papel o que muitos de nós já pensou um dia: o que leva alguém a sair mascarado e/ou fantasiado na rua e subjugar o que, na visão desta pessoa, parece ser um malfeitor? Certamente não vemos o personagem Matt Murdock conversando e refletindo com os vilões até que parem, isto é, a violência física é aplicada como forma de coerção e submissão. Segundo Debra Niehoff, em seu livro A Biologia da Violência, agressão é um comportamento adaptativo entendido como a utilização de força física ou verbal em reação a uma percepção de ameaça. Já a violência é um comportamento mal adaptativo, que consiste em uma agressão direcionada ao alvo errado, no lugar errado, no tempo errado e com a intensidade errada. Segundo a perspectiva narrativa de Demolidor, Matt é inserido na categoria de comportamento agressivo, tendo em vista que percebe uma ameaça muito grande vinda de Fisk e decide agir, através dos meios que conhece e até além, para impedir essa ameaça. Neste momento da história, nos deparamos com um Demolidor descrente em seus meios antigos, afinal de contas, ele se encontrou em uma enorme frustração por não poder salvar o amor de sua vida através de suas ações mais brandas e acaba de presenciar uma das maiores ameaças que já enfrentou sair pela porta da frente da prisão e ainda ser protegido pelos próprios agentes que deveriam repreende-lo. Talvez seria nesta temporada que melhor se encaixariam os questionamentos de moral feitos por Frank Castle na segunda temporada.

O protagonista reflete por boa parte da temporada sobre a função do Demolidor, seus objetivos e o caminho que trilha para alcança-los, considerando até mesmo matar o Rei do Crime, acreditando que só assim poderá cessar essa ameaça. Segundo o autor Leonard Berkowitz, esse comportamento agressivo poderia ser definido como instrumental, onde Murdock usa de suas habilidades físicas para buscar recompensas e evitar punições, isto é, eliminar por completo a ameaça que Wilson Fisk representa e evitar a possibilidade de óbito daqueles que o herói ama, além de mais inocentes. Contudo, como as evidências sugerem, isso dificilmente resolveria o problema. Não há necessidade de citar nenhuma pesquisa, basta buscarmos um raciocínio lógico e básico: se combatermos apenas os sintomas, o problema continuará ressurgindo. É necessário combater a doença, a raiz deste problema. Se o Demolidor cruzasse a linha e, de fato, matasse Fisk, isso criaria um vácuo de poder na cidade, facilmente abrindo espaço para outros tomarem seu lugar e o ciclo continuaria.

Para o grande intelectual Albert Bandura, a aprendizagem é social, ou seja, o comportamento é aprendido mediante interação com o meio. A grande balança para a agressão é a recompensa que o ato pode oferecer. A pessoa, frente a uma situação, pesa os benefícios e os custos potenciais em expressar um comportamento agressivo. Se a agressão compensar, o indivíduo escolhe promove-la. Bandura ainda nos diz que o comportamento de agressão e violência não são espontâneos, mas precisam ser aprendidos e treinados para que sejam executados. Em certo momento da temporada, Matt tem um enfrentamento com a imagem de seu pai e nos é apresentado a ideia de que nosso herói faz o que faz porque gosta, porque se sente vivo, como se fosse algo catártico. É comum pensar que a catarse, principalmente quando liberada fisicamente, pode funcionar como uma ação terapêutica. Quem nunca ouviu que bater num saco de areia imaginando que está agredindo seus problemas era um comportamento que poderia produzir uma resposta de relaxamento? Contudo, estudos de 1994 dos autores James Tedeschi e Richard Felson mostram que a catarse pode levar a mais comportamento agressivos. A exposição a mensagens pró-catárticas e a oportunidade de expressar fisicamente a raiva aumentaram a probabilidade de envolvimento em subsequente comportamento agressivo, ao invés de promover o relaxamento e reduzir a raiva. Portanto, nosso herói mente para si mesmo se suas ações supostamente lhe trariam algum sentimento de alívio. É mais fácil argumentar que a exposição à violência libera grandes quantidades de dopamina, algo que pode ser viciante.

Veja, nós poderíamos ficar aqui e fazer mais e mais análises sobre o comportamento do Demolidor, mas isso não seria inteiramente produtivo. Quando me referi à sensação de impotência, apontei como os esforços do herói surgiram efeitos limitados no contexto como um todo. Ao final da temporada, o Demolidor subjuga o Rei do Crime, decide não o matar e, de certa forma, impõe sua vontade fazendo um acordo com ele. Estamos cientes de que a ameaça continua apesar da prisão do vilão, isso nos foi evidenciado durante a temporada toda. Matt garantiu a segurança de si próprio e daqueles que ama, contudo, não pode fazer nada além de se manter vigilante pelas centenas de outras pessoas inocentes que podem, e muito provavelmente irão perecer nas mãos do vilão. Nós, como sociedade, chegamos a um ponto de extrema fragilidade da nossa saúde mental. Procuramos justiça e, mais frequente do que gostaríamos, somos abandonados e manipulados por aqueles que deveriam estar do nosso lado. E isso nos trouxe onde estamos: divididos, confusos, com medo e a mercê dos predadores silenciosos, lobos em pele de cordeiro. Perceba como é fácil recorrer a promessas rasas, a soluções fáceis e discursos baratos.

O objetivo deste artigo não é apresentar uma resposta para o questionamento da validade de sair nas ruas e fazer justiça com a próprias mãos ou desejar a morte dos representantes do povo. O objetivo é sempre suscitar o debate e a reflexão. Matt Murdock só obteve sucesso quando pensou de forma bem orientada e meticulosa. Se decidisse cruzar a linha e abandonar sua moral, perderia mesmo que conseguisse eliminar Wilson Fisk. Nosso herói mediu as relações de custo x benefício, avaliou a função dos seus comportamentos e determinou uma linha de ação. A cena onde Matt e Fisk gritam um para o outro antes de entrarem em conflito foi uma boa forma de, como a série aponta anteriormente, soltar toda a frustração acumulada, dando ao herói uma válvula de escape. Além de ter sido uma cena que me deu baita frio na espinha.

Obras consultadas para este artigo:
A Biologia da Violência – Debra Niehoff
Aggression: Its Causes, Consequences, and Control – Leonard Berkowitz
Violence, Aggression, and Coercive Actions – James Tedeschi e Richard Felson
Fatores etiológicos da agressão física: uma revisão teórica – Kristensen et al.

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