Vídeos Segunda, Quarta e Sexta.   SE INSCREVA

Search

“Todo Mundo Merece Morrer”, e a facilidade em condenar a vida alheia

O atual momento político (e social) do Brasil vem desencadeando uma forte onda de revolta e de sede por justiça em uma parte da população. Em alguns casos, discussões acaloradas se formam nas redes sociais e, em outros momentos, até mesmo agressões físicas ressaltam essa polarização entre o que se acredita ser o bem e o mal. A justificativa para várias dessas demonstrações de ódio verbal vem de velhas máximas como “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para humanos direitos” ou “se existisse pena de morte no Brasil, nada disso aconteceria”. Mesmo que tais aforismos absurdos fossem, de alguma forma, corretos, ainda restaria uma dúvida gigante: afinal de contas, o que é ser alguém “de bem”? Quais condições seriam capazes de determinar que um ser humano mereça ou não mereça perder sua vida? E mais ainda: quem teria o poder de exercer um julgamento tão complexo?

Esse questionamento é o ponto de partida para a reflexão sobre o ser humano – e, inclusive, sobre si mesm@ – proposta pela obra “Todo Mundo Merece Morrer”. A jornalista e escritora Clarissa Wolff consegue nos mostrar – em sua obra de estreia – nossos próprios julgamentos, em torno de um plot tão realista e intenso que chega até a nos causar certa repulsa. Não pelo livro, é claro.

A história começa com a notícia publicada em um jornal, onde se lê que um metrô da linha verde de São Paulo sofreu um atentado: um médico renomado foi assassinado a tiros, e só não houveram mais vítimas porque um dos passageiros se jogou sobre o atirador, evitando um desfecho ainda mais trágico e salvando várias vidas. A partir daí, Wolff embrenha o leitor na vida de todas as pessoas cujas vidas foram poupadas naquele metrô, indo muito além da imagem de sobreviventes de um atentado (portanto, “mocinhos” para a mídia) e nos expondo ao íntimo do pecado, da maldade e da capacidade humana de causar o mal alheio, ou mesmo de ser tomado pelo mais puro egoísmo.

Dentre as vidas salvas pelo herói do metrô, estavam um padre, uma professora de escola pública, um jovem portador de HIV, uma mulher cujo único filho é ainda recém-nascido e vários adolescentes. Comovente, não é mesmo? Mas falando mais especificamente, temos: um padre que abusa sexualmente de crianças, uma professora que sente nojo pelos alunos pobres para os quais dá aula, um portador de HIV que “carimba” todas as mulheres com quem transa, uma mulher que não queria ser mãe e não consegue amar o próprio filho, um traficante de drogas e uma garota que pratica bullying do pior nível possível com a colega de escola. Ao todo, conhecemos a mentalidade das 13 pessoas reunidas ao final do dia no metrô atacado, no período das 24 horas anteriores ao embarque de cada uma delas.

Passando por cada capítulo de “Todo Mundo Merece Morrer”, uma mistura de sentimentos inunda a mente do leitor: sentimos aversão por atitudes ou pensamentos de alguns personagens, revolta pelo mal que alguns deles causam e tristeza (mesclada com frustração) por nos depararmos com as potenciais fraquezas de caráter do ser humano. O que tudo isso pode trazer à tona em nosso íntimo é, exatamente, a ousada provocação da obra: aquele pensamento obscuro de que, no fundo, qualquer pessoa naquele metrô mereceria morrer, por todo o mal que causam aos outros.

O interessante é que, nos exatos momentos da leitura em que esse pensamento me ocorria, eu notava mais claramente a inteligência e a sutileza com que a Clarissa nos coloca de frente com nosso próprio julgamento. Somos confrontados por um instinto quase primitivo de querer justiça pelos erros do pecador – mesmo que isso custe sua morte, ao mesmo tempo em que nos forçamos a exercitar a empatia pelo ser humano que, no final daquele dia, sobreviverá a um atentado. Assim, Clarissa faz um teste com o leitor, nos obriga a dominar sentimentos indesejados e nos faz questionar sobre o que, realmente, nos dá o direito de decidir sobre quem merece viver e quem merece morrer. É uma obra que nos coloca à prova e nos apresenta às nossas próprias obscuridades. Nos faz entender que a mesma maldade que condenamos nos outros também pode encontrar morada em nossas mentes, restando a cada um de nós a tarefa contínua de dominá-la e não deixá-la tomar mais espaço. Afinal, mesmo que julguemos a vida alheia e mesmo que tenhamos razão em achar que crimes são errados, não temos o arbítrio de determinar algo tão sério quanto o direito a vida de outro ser humano.

A leitura de uma obra como essa é necessária, principalmente no contexto atual do Brasil. Observamos a perda gradual da capacidade de empatia ao nosso redor, e até mesmo a perda do discernimento a respeito das punições corretas para aqueles que erram em qualquer medida. Após imergir em tantas histórias verossímeis sobre pessoas cujas atitudes são as mais odiosas e assustadoras, entendemos que nossa única tarefa real em sociedade é impedir que sigamos pelo mesmo caminho infeliz. Sem desejar a famigerada “justiça com as próprias mãos” que apenas nos colocaria no mesmo nível de culpa do outro, e entregando-nos ao trabalho de cuidar de nossas próprias vidas, simplesmente.

Apesar do assunto e do desenrolar da história ser bastante pesado, a leitura se manteve fluida graças à escrita da Clarissa. Para cada personagem, ela encontra uma forma diferente de conduzir a narrativa, sendo em primeira ou terceira pessoa, de maneira formal ou coloquial, ou até mesmo com uma estrutura semelhante a de versículos e capítulos da Bíblia. Essa singularidade a cada capítulo proporciona no leitor a sensação de ler um livro de contos, e nos mantém conectados facilmente. Foi, com certeza, uma das leituras que mais me prenderam a atenção nesse ano.

Quando li a sinopse de “Todo Mundo Merece Morrer”, a primeira impressão que tive foi a de estar diante de um thriller, daqueles em que já sabemos a respeito de quem matou fulano, mas só sabemos o porquê desse fulano ter morrido lá no final. Posso dizer que me enganei completamente, visto que o livro tem uma proposta que – sem ofensa aos thrillers, claro – vai muito além de descobrir algo sobre um crime. Senti meus pensamentos serem revirados de forma abrupta e certeira, e essa foi uma experiência que raras vezes acontece na minha vida como leitora. Deixo aqui a indicação de um livro que, apesar de ser uma leitura rápida pela quantidade de páginas, pode ser uma experiência especial para quem curte refletir sobre sua própria compreensão acerca da humanidade.

Onde Comprar:
Submarino

ISBN-13: 9788576867180 | ISBN-10: 8576867184 | Ano: 2018 | Páginas: 168  | Editora: Verus

Clarissa Wolff, 27 anos, é escritora e trabalha com estratégia de conteúdo e comunicação. Além de manter uma coluna sobre literatura na CartaCapital, já escreveu para Rolling Stone, VICE, UOL, Cult e Folha de S.Paulo. Todo Mundo Merece Morrer é seu livro de estreia.

{ Esse livro foi enviado pela editora Verus para resenha no blog. Em compromisso com o leitor, sempre informamos toda forma de publicidade realizada pelo blog 

Aproveite para nos seguir nas redes sociais!

Sair da versão mobile