Dungeons & Dragons foi um marco na história do RPG, um criador de mitos e proliferador dos jogos de interpretação. Seu nome arremetia a dois elementos clássicos das histórias de aventuras: as cavernas e os dragões. Quase simultaneamente, a mesma produtora do D&D trouxe ao mercado outro jogo de mesa fantástico, mais simples e menos sério, mas com igual intuito de levar os jogadores a um universo cheio de magia e aventura, nomeando-o com
outros dois elementos fundamentais às tramas de fantasia: Tunnels & Trolls (a tradução aqui se faz desnecessária).
Os trolls, no entanto, são menos marcantes nas aventuras literárias e geralmente possuem um papel extremamente secundário dentro da narrativa. Sua figura não costuma possuir regras óbvias e são interpretados das formas mais variadas, servindo mais para apetecerem ao contexto do que influenciarem o enredo em que se apresentam. O porquê disso é a chave para a coluna desta semana na nossa série Criaturas e Mitos.
As culturas nórdicas e escandinavas, muitas vezes consideradas uma única coisa – pois realmente partilham dos mesmos mitos, mas que possuem evoluções diferentes de lendas – são geradores de uma mitologia que se espalharia para diversas outras culturas, possuindo um tronco de inúmeras ramificações e frutos distintos. Para entender suas origens, os historiadores recorrem aos filólogos, tendo ambos de interpretarem minuciosamente a língua e os significados das palavras e expressões antes de poderem definir as crenças e costumes daqueles povos. Isto é extremamente importante de ser entendido para que possamos compreender a origem dos trolls, que nos últimos anos acabaram por se tornar a designação de um desordeiro da internet.
Troll, nos idiomas mais remotos, pode não ter sido um sujeito em si, mas sim um adjetivo para homens ou criaturas grotescas e feias. Ou seja, o troll poderia ser um homem da floresta que se tornara canibal ou uma velha muito enrugada que adotara o uso da magia. Pode e não pode, já que a perda de informação atrapalha tais estudos. Os trolls também poderiam ser uma divisão maléfica dos jotuns, gigantes da mitologia nórdica (para os cinéfilos fãs da Marvel, o mundo que Thor e seus companheiros visitam no primeiro filme do deus do trovão é Jotunheim, lar dos jotuns). Sabendo disso, antevê-se que não exista uma definição única e imutável para um troll. Fique a vontade para explorá-lo no contexto da sua jornada!
Um conselho arriscado esse, pois isso não significa que trolls possam ser qualquer coisa. São personagens típicos de uma cultura voltada para aldeões e moradores próximos a floresta, habitantes de regiões exóticas e muito peculiares. Para compreender melhor essas limitações, vejamos como tal criatura aparece no decorrer da história.
O mito se originou como advertência para cidadãos menos precavidos e crianças para que não se embrenhassem muito afundo na floresta e principalmente evitassem cabanas desconhecidas, cavernas escuras ou o escalar de montanhas. Fundou-se então o lar dos trolls, estes quatro pontos são seus locais preferidos e os representantes primordiais nas lendas. Nas Eddas, a antiga compilação de textos achados na Islândia, encontram-se descrições-chave para a imagem dos trolls, sendo a mais conhecida aquela do encontro entre o poeta Bragi e uma mulher-troll, que se define como uma conhecedora dos mistérios da natureza, uma vilã do dia e do sol e, acima de tudo, um mau presságio.
Como vertente dos jotuns, era dito que os trolls podiam ser vistos amedrontados diante dos relâmpagos, que seriam criações de Thor enquanto ele duelava com tais criaturas. Rapidamente eles se esconderiam em suas cavernas ou na encosta das montanhas. Sendo assim, concluímos que um troll detesta a claridade, seja pelo relato das Eddas, seja pelos
contos que os associam aos jotuns. Passadas as gerações, soube-se que um troll não sobreviveria à luz do dia e voltaria a sua forma original, a de pedra, caso exposto ao sol, preso para sempre àquela forma. Curioso é saber que este não é um relato de Tolkien – os leitores de O Hobbit ou os espectadores do filme homônimo saberão do que estou falando. Repetindo a informações do texto sobre dragões, Tolkien estudara muito as línguas antigas nascidas na Europa, o que significa estudar suas lendas; inegável é o reaproveitando de tais em sua obra.
A figura de um ser grotesco, enrugado ou feito de pedra, temeroso à luz do dia, envolto de eventos mágicos naturais e habitante de florestas, montanhas e cavernas era abrangente no norte e no centro-oeste europeu. Um troll, ao contrário do que Tolkien definiria, não é uma criatura necessariamente gigante. Pode, inclusive, ser do tamanho de um homem comum, de um anão e até mesmo de um duende, sendo que contos mais antigos apresentavam trolls como pequenas fadas, sua história muito próxima dos duendes, fadas e leprechauns das culturas anglo-saxãs e célticas. Ou seja, existe mesmo uma divisão entre trolls das montanhas, trolls das cavernas, trolls da floresta, trolls noturnos e até mesmo trolls caseiros, usados como amuletos da sorte ou auxiliares da casa, quando domesticados.
No entanto, o primeiro milênio d.C. acrescentou uma particularidade interessante à sua figura. Com a substituição da religião pagã pela cristã em toda a Europa, a figura do troll permaneceu na crendice popular fortemente e foi mutada por ela mesma para que pudesse ser sustentada. A criatura grotesca das florestas foi descoberta como uma descrente, que
se recusava a aceitar as histórias bíblicas, e por isso era inferior a qualquer homem cristão. Um cidadão não-cristão, que não fora batizado ou professara sua fé, caso se embrenhasse na selva, provavelmente atrairia um troll pelo seu odor “não-crente”.
Tornou-se comum na Escandinávia moderna alegar que uma região sem relatos de trolls deve tal benção à construção de uma igreja com um sino, sendo o soar deste o aviso aos trolls de que naquele local moram cristãos. Em contrapartida, uma igreja demolida era tida como uma igreja que fraquejara perante o poder de seus antagonistas, que os irritaram com o barulho do sino e fomentaram sua raiva.
Como em grande parte das lendas, um ser do mal está fadado ao fracasso. Os troll fugiram durante séculos desta regra, sendo considerados somente animais da natureza, seres que deveriam não ser incomodados tanto quanto ursos, mas que receberam seu legado de vilões no advento da Era Cristã.
Cabe a cada um, no entanto, saber onde encontrar seu troll mais perigoso, geralmente aquele que desceu em grupo em uma montanha para caçar e acabou de se deparar com um grupo de aventureiros ávidos por uma boa batalha. Tenha certeza de que seus guerreiros são fiéis, ou terão uma grande desvantagem com relação aos monstros da floresta!
Nota: Recomendo o filme norueguês O Caçador de Troll (Trolljegeren – 2010), extremamente fiel ao mito do troll e feito no local de origem das lendas, a Noruega.