Vocês já ouviram falar de um cara chamado Mikhail Bakhtin? Uma das teorias dele (a bem grosso modo) é que você é tudo o que passou na vida. Tudo o que você passou desde a sua infância está armazenado naquilo que é chamado “memória discursiva”, que podem não ser concretas como uma lembrança, mas você a utiliza no cotidiano sem perceber. Assim, tudo o que você “cria” no dia a dia, seja aquela conversa com o seu amigo ou até mesmo uma composição musical acabam por ser um sincretismo de infinitos conceitos armazenados na memória discursiva. Isto é, a bem grosso modo, você é o que você consome.
Desta forma, o ser humano é alguém moldado por tudo o que ele consumiu algum dia. Por isso é comum que você tenha uma ideia genial e jure que é sua, mas alguém já a fez antes. Provavelmente, você teve algum contato indireto com aquilo e ficou em sua memória discursiva até que tal ideia finalmente pudesse ser usada. Até aqui, vocês muito provavelmente já fizeram alguma relação com o RPG, o foco (ou o que deveria ser o foco) deste texto. Existe também a chance de terem se lembrado de seus próprios personagens que juntam infinitas características de tudo aquilo que o jogador gosta, mesmo que de forma inconsciente. Enfim, esse resumo bem rápido da introdução ao estudo da intertextualidade de Bakhtin serve como o primeiro ponto da nossa conversa aqui.
Agora, saltamos da intertextualidade para a questão da semiótica. Uma das questões da semiótica é que a sociedade, inconscientemente, acaba por criar vários padrões em sua história, principalmente na questão narrativa. Desde os primórdios existe a estrutura do Monomito, também conhecida como Jornada do Herói, onde o roteiro segue por um roteiro pré-definido, que só muda de acordo com o contexto dado. Isto é, perceba o padrão das histórias dos contos de fadas, dos heróis gregos como Hércules e Teseu, mitologia nórdica, como é a lenda de Beowulf e várias outras histórias da antiguidade.
Até aqui, já dá para cruzar o pensamento intertextual de Bakhtin com a história do Monomito, que, apesar de sempre existir, foi finalmente posta de forma epistemológica por um cara chamado Joseph Campbell. Isto é, você não cria nada, Dungeon Master. Você Copia. Isso mesmo! Copia, plagia e qualquer outro verbo feio que acusa você de não ser alguém criativo.
Mas calma! Isso não é tão feio quanto parece. É por isso que o termo Intertextualidade foi cunhado. O que você faz são infinitas referências, junta em uma coisa só e cria algo original. Agora sim vamos falar de RPG.
Mestro há dez anos e afirmo por mim e por qualquer outro que, ao mesmo tempo em que você quer soar original, você fica travado. A solução muito óbvia que acabei descobrindo (que, não fui eu exatamente, como coloquei lá atrás já quando falava sobre memória discursiva) é que você pode pegar qualquer roteiro e adaptar no mundo de campanha sem parecer que foi influenciado por algo. Algumas vezes isso até falha, porque o jogador consegue fazer a assimilação, mas de um modo geral, funciona. Você pode pegar qualquer enredo e, sem fazer uma adaptação técnica no papel, com estatísticas dos personagens e tal, usar em mesa de jogo, simples e pura.
O meu exemplo mais bem sucedido – acho – foi em uma campanha de Tormenta. Os personagens já eram de alto nível, conhecidos como os Cavaleiros Libertadores de Valkaria e tudo mais. Já estava ficando até chato e decidi que ia fazer uma aventura para encerrar a campanha. Peguei um enredo épico já pronto e comecei a desenvolver da mesma forma, mas adaptando-o ao cenário em questão.
A ideia era que a Tormenta ia finalmente engolir o mundo. Como último esforço para mantê-los, os 20 Deuses usaram todas as suas forças para deixar Arton em um estado de suspensão temporal. Os jogadores não conseguiam interagir com os NPC’s civis e coisa do gênero, como se estivessem em planos diferentes interligados. Era ou isso, ou a Tormenta engolia tudo. Cada Deus ficou responsável por uma região de Arton e a missão dos jogadores era resolver um número de tarefas que correspondiam a cada Deus específico, para restaurar a ordem naquele ponto. Eu não me lembro de exatamente de todas (devo ter o roteiro em algum dos antigos CD’s de Backup), mas das poucas que ainda estão em minha memória era a tarefa de Allihanna que purificava a costa do Rio dos Deuses, que consistia na derrubada de uma barragem e deixar o rio fluir (aquela coisa bem metafórica e tosca mesmo). Yuden era a região de Keenn e o reino precisava ser invadido em uma batalha militar. Hynnin recuperava seu poder e purificava Ahlen depois da resolução de uma série de armadilhas. Além disso, várias missões paralelas menores que teriam alguma coisa a ver com a aventura maior.
A cada nova região liberada, seu Deus correspondente recuperava o poder. Os jogadores também tinha cada um a sua divindade e recebiam status de Avatar também, só para aumentar a escala de poder daquela porcaria. Depois de todas as regiões purificadas, os Lordes da Tormenta se reuniam e precisavam ser derrotados. Depois de alguma enrolação, os Lordes acabam uma hora ou outra se dando mal, mas ainda resta a última ameaça. Um Deus há muito esquecido estava voltando, tinha relação com a Tormenta e os jogadores precisavam dar um jeito nisso. A ressurreição de Kallyandranoch ia trazer eventos cataclísmicos que colocariam em pauta qualquer conquista do jogador em purificar cada região (como um mestre bem filho da puta mesmo). Cabe aos jogadores pedir ajuda de alguém que tinha armas para montar um exército imensurável. Calhou também do cara ter um robô gigante.
Mestre Arsenal entrou na jogada (ele nem tinha morrido ainda na época, para der uma ideia de quão antiga essa aventura é) e acabou ajudando a turma toda, dando uma surra no Calangão do Kallyandranoch e salvando a galera toda com o robô gigante. Eu juro que essa parte final pode parecer tosca, mas foi maneiraça. (Momentos não citados eram os diálogos de Nimb que eu me divertia em criar, geralmente era ele a quem eu recorria para contar uma história sobre algo e tal e dos Deuses também partindo no tapa contra os Lordes da Tormenta).
Apesar de o final ter se desvinculado um pouco, eu abro o jogo que a primeira parte da aventura, a mais extensa, foi baseada numa franquia meio desconhecida chamada “The Legendo of Zelda”, conhecem? Pois bem. Twilight Princess na maior caruda. A Midna era até a Tenebra, porque sempre aparecia das sombras e tal. Aconteceu de eu pegar a ideia e brincar um pouco com ela, simples e puramente, misturando com vários outros elementos já familiares da campanha, quanto fora dela. E criando alguma coisa original. Ah, é mesmo. O original não existe. Toda história hoje possui elementos de histórias passadas. Que possuem elementos de histórias passadas. E assim o mundo acabou se consolidando hoje.
Uma vez fiz uma campanha onde todos os jogadores eram trancados uma cidade e começava um Free for All com os habitantes lá de dentro. Falaram que eu copiei de Jogos Vorazes. E se eu falar que Jogos Vorazes não é um conceito original? Olha Battle Royale aí. E muito antes disso, não era o que os romanos faziam nas arenas de Gladiadores? São padrões que se repetem. (E a minha campanha não era Jogos Vorazes, era baseada em Madworld, um jogo que, ao contrário do sentimentalismo barato adolescente, o bicho realmente corre solto).
Enfim. Acho que essa é a dica de hoje. Bloqueio? Parta de um roteiro pré-existente. Já fiz boas aventuras até com roteiro de filme de Pokémon, só tem que caprichar. Quem escreveu o roteiro da sua inspiração também teve outras inspirações, assim não deve haver problema. Acho que a única vez em que descobriram na caruda a minha inspiração foi a aventura baseada em Planeta do Tesouro. Mas a Campanha era uma Space Opera também, eu que caguei o pau na adaptação.
Boa matéria, concordo completamente.
No livro do novo mundo das trevas eles até te estimulam a fazer isso:
” A inspiração pode vir até mesmo de jogos, se você gosta de matar alienígenas em um lugar fechado, por que não criar uma história assim para se divertir com seus amigos”.
PS: Quis citar isso só pra alfinetar esse pessoal que fica reclamando dos jogos de vampiro dos outros.