Não é de hoje que morro de vontade de ler a HQ “O PerfuraNeve” (originalmente “Snowpiercer”), escrita por Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb. Histórias distópicas mexem comigo, e essa me parece uma boa oportunidade de abrir a mente para um clima mais aproximado da ficção científica.
A sociedade me julga por isso, mas sim: eu assisti a adaptação antes de ler o quadrinho. Fazer o quê, meus amores, se a Netflix chegou antes aqui em casa?!
De qualquer maneira, “Expresso do Amanhã” foi uma experiência diferenciada em forma de filme. Nunca ouvi falar do diretor Bong Joon Ho e já pude perceber que ele é bem ousado, porque aquela movimentação de câmera e a escolha por uma fotografia extremamente escura não devem ser escolhas tranquilas para serem feitas. Simplesmente adoro quando um filme sai da mesmice hollywoodiana e coloca um conceito próprio na elaboração da narrativa.
Mas falando em escuro, esse é o clima em boa parte do filme. Logo no início, cheguei a arrumar o brilho da minha televisão, porque não conseguia enxergar nada. A cada cena, porém, fui constatando que a minha televisão não tinha estragado. A ideia do longa era justamente essa: já começar colocando o espectador no mesmo plano de escuridão, hostilidade e desnorteamento dos personagens.
A história do filme se passa na atualidade, diferente de outras distopias que imaginam um futuro (distante ou não) cheio de problemas. O mundo foi inteiramente congelado após uma tentativa frustrada de restabelecer os danos causados pelo aquecimento global. Os últimos sobreviventes da humanidade terrestre se encontram em um único trem. Comandado por Wilford, um empresário que o criou após “prever o apocalipse”, a máquina possui um incrível motor que funciona ininterruptamente, e roda o mundo para manter todos os passageiros aquecidos.
A ideia de um trem que preserva todas as espécies de vida humana seria realmente boa, se não fossem vários “poréns”.
O principal “porém” é a enorme similaridade entre o sistema de manutenção da ordem no trem e o atual sistema político e social que observamos no mundo, aqui na vida real, antes de qualquer tipo de apocalipse.
O trem é dividido por classes sociais, onde os mais ricos ficam próximos à frente, ao poderoso motor do veículo, enquanto os pobres ficam na cauda, desprovidos de qualquer forma de conforto ou higiene. A primeira classe do trem possui tudo de melhor que ele oferece: alimentação racionada, porém de altíssima qualidade, uma recriação da natureza, da fauna e do mar que antes existia no mundo, escola para ensinar as crianças (conforme o que Wilford quer que elas aprendam, é claro), e entretenimento de qualidade. Os pobres alojados na cauda, porém, são utilizados como empregados/escravos conforme a necessidade imposta pela elite; não possuem direitos, qualidade de vida ou qualquer outra coisa. Mesmo a comida dada a eles já demonstra o descaso: sempre uma única barra de proteína cuja matéria-prima é extremamente duvidosa.
Para a população pobre, o trem é o salvador de suas vidas, enquanto para a elite, ele se torna uma forma poderosa de manter a massa populacional sob rígido controle, nas mãos de Wilford e seus subordinados. Curtis, o personagem principal vivido por Chris Evans na adaptação, não aceita a visão da injustiça e eterna submissão a um poder cujo rosto eles nem ao menos conhecem. Juntos a ele, muitos outros sobreviventes encorajam-se, e a ação do filme começa quando um grupo da classe pobre decide avançar os vagões, enfrentando os “soldados” de Wilford, para chegar ao motor e tomar o poder do trem.
“Expresso do Amanhã” é uma alegoria de um sistema político e social adotado em todo o mundo, que funciona de maneira simples e cômoda: os mais ricos possuem o poder, os mais pobres se subordinam a esse poder. Os ricos comandam, os pobres obedecem. Os poderosos podem ter conforto, entretenimento e qualidade de vida. Os pobres devem ser ignorantes (em conhecimento) e agradecidos aos poderosos apenas pelas migalhas que recebem destes.
Como desabafei no início desse texto, não pude (ainda) ler a HQ que inspirou o filme, mas falando apenas pela versão longa-metragem dessa história, já digo que foi um tapa na cara. Os sobreviventes, naquele cenário, convivem diariamente com o que há de pior em uma sociedade: a má distribuição do poder, o anseio por uma ordem que põe em xeque a vida de qualquer um, o instinto egoísta de sobrevivência em condições extremas, a desigualdade resultante da divisão em “castas” sociais; e, é claro, as más escolhas que, há 18 anos atrás, os levaram a precisar morar em um trem.
O ser humano se mostra o pior de seus predadores, mas ainda assim, e sem dar spoiler, já posso alertar que o destaque da narrativa é justamente a prova de que a união realmente pode fazer a força. Enquanto a inanição e a resignação mantiveram a classe mais pobre em estado vegetativo por quase duas décadas, uma liderança e um forte desejo em comum puderam incitar o poder de conquistar os vagões, um a um, mesmo com baixas recorrentes entre o grupo.
O filme é chocante, claustrofóbico e inquietante. A todo o momento, me senti aflita em pensar que, se o mundo estava inabitável, não havia nada que pudessem fazer para modificar o atual cenário. Ao contrário, o final da obra me mostrou o quanto eu não havia me dado conta de uma questão simples, a qual o grande empresário Wilford havia mantido oculta – tanto dos personagens dentro da tela, quanto do público de fora.
Os enredos distópicos, quando levados ao cinema, tendem a ficar apelativos e emocionais. Basicamente, tornam-se uma surra de clichês feitos para chorar. “Expresso do Amanhã”, pelo menos para mim, se mostrou mais do que uma obra destinada a explorar o medo do fim do mundo. Ela aponta características e formas de governo/poder já pertencentes a nossa sociedade. Nos atira em uma possibilidade realista, de um futuro em que o ser humano chega ao último degrau de exploração da natureza – algo já em estado avançado mesmo fora da ficção.
Consegui me sentir incomodada junto com os personagens, me questionei não apenas sobre a vida no futuro, mas sobre o sistema e a suposta ordem que aceitamos como padrão hoje, agora, nesse momento. Identifiquei o quanto é perigoso o controle de poucos sobre muitos, o quanto é fácil e cômodo deixar a falta de informação minar a nossa mente, nos afastando do conhecimento e da atitude em prol da nossa própria liberdade.
Sendo o estranhamento, o questionamento e a adaptação da ficção à realidade algumas das coisas mais incríveis em uma história distópica, “Expresso do Amanhã” foi, com certeza, uma das distopias mais perturbadoras e inesquecíveis que já assisti.
E a vontade de ler a HQ original francesa, é claro, só aumentou.
Aproveite para nos seguir nas redes sociais e continuar acompanhando nossas dicas!
Facebook ? Instagram ? Twitter ? Tumblr ? Google + ? Pinterest ? Youtube ?Blogvin ? Flickr